Comentário Bíblico
Levítico 1
Introdução a Levítico
Evidentemente, grande parte do livro de Levítico foi escrito por Moisés em algum momento no primeiro mês (abibe ou nisã no calendário hebraico, correspondente a março-abril) do segundo ano da peregrinação de Israel (comparar Êxodo 40:17; Números 1:1; Números 10:11) — talvez definindo seu formato definitivo pouco antes de sua morte, quase quarenta anos depois. O nome hebraico desse livro, Wayyiqra, que significa "E Ele chamou", origina-se de suas primeiras palavras. O título grego da Septuaginta é Leuitikon — latinizado na Vulgata como Levítico —, que significa “referente aos levitas”.
Entretanto, esse título é um pouco descontextualizado, pois o livro não trata de todos os levitas, mas se refere mais aos sacerdotes da família de Arão, um segmento dos levitas. (Nem todos os levitas foram santificados antes do livro de Números). Talvez os títulos mais apropriados para esse livro sejam aqueles encontrados no Talmude judaico — “A Lei dos Sacerdotes” e “A Lei das Ofertas”.
O sacerdócio aarônico foi divinamente ordenado como um mediador entre Deus e a nação de Israel. Conforme orienta esse livro, os sacerdotes deveriam oficiar um elaborado sistema de sacrifícios e rituais. O livro de Hebreus nos diz que “essa é uma ilustração que aponta para o tempo presente [da redenção de Cristo], pois as ofertas e os sacrifícios que os sacerdotes apresentam não podem criar no adorador uma consciência totalmente limpa. Tratava-se apenas de alimentos e bebidas e várias cerimônias de purificação; eram regras externas, válidas apenas até que se estabelecesse um sistema melhor” (Hebreus 9:9-10, Nova Versão Transformadora) — isto é, no tempo da morte e ressurreição de Cristo seguido pela concessão do Espírito Santo à Igreja do Novo Testamento. Contudo, esse sistema sacrificial era de Deus — e serviu a um propósito valioso, pois fazia parte do objetivo de levar pessoas a Cristo (ver Gálatas 3:24-25). Aliás, após o retorno de Cristo, esses sacrifícios voltarão a ser realizados (ver Ezequiel 46:1-15).
Certamente, Jesus se tornou o verdadeiro sacrifício para toda a humanidade. Por isso, não há necessidade de sacrifício de animais hoje em dia: “Porque é impossível que o sangue dos touros e dos bodes tire pecados. Pelo que, [Jesus] entrando no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste, mas corpo Me preparaste; holocaustos e oblações pelo pecado não Te agradaram. Então, disse: Eis aqui venho (no princípio do livro está escrito de Mim), para fazer, ó Deus, a Tua vontade. Como acima diz: Sacrifício, e oferta, e holocaustos, e oblações pelo pecado não quiseste, nem Te agradaram (os quais se oferecem segundo a lei). Então, disse: Eis aqui venho, para fazer, ó Deus, a Tua vontade. Tira o primeiro, para estabelecer o segundo. Na qual vontade temos sido santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez. E assim todo sacerdote aparece cada dia, ministrando e oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, que nunca podem tirar pecados; mas Este, havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, está assentado para sempre à destra de Deus” (Hebreus 10:4-12).
Cumpre destacar também que agora o sacerdócio de Melquisedeque de Jesus Cristo substituiu o sacerdócio aarônico. Atualmente, Jesus é o Mediador entre Deus e o homem (ver Hebreus 7-10). Na verdade, agora os cristãos são sacerdotes a serviço de Deus (1 Pedro 2:5, 9). Aliás, o sacrifício definitivo de Jesus Cristo não era a única coisa representada nesses sacrifícios do Antigo Testamento. Eles também tipificavam nossa decisão de seguir o exemplo de Cristo hoje em dia, apresentando-nos como ofertas a Deus: "Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis o vosso corpo em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional" (Romanos 12:1).
Esse fato surpreendente é explicado nas notas introdutórias desse livro na Bíblia de Estudo Thomas Nelson: "Os cristãos modernos podem aprender muito com Levítico. A santidade de Deus, a necessidade de viver uma vida santa, o alto custo da expiação e do perdão, o privilégio e a responsabilidade de apresentar apenas o nosso melhor a Deus, a generosidade de Deus que capacita o Seu povo a ser generoso também — essas são apenas algumas das lições. O livro de Levítico revela a santidade de Deus e Seu amor por Seu povo de uma forma não encontrada em nenhuma outra parte da Bíblia. Em última análise, esse livro conclama o povo de Deus de qualquer era para essa grande jornada de viver a vida conforme os sagrados propósitos divinos".
Antes de analisar cada uma das cinco principais ofertas detalhadas nos primeiros sete capítulos de Levítico, recomendamos àqueles que desejam estudá-las mais profundamente que leiam o livro de Andrew Jukes, intitulado The Law of the Offerings (A Lei das Ofertas, em tradução livre). Ele é considerado uma obra referencial sobre esse assunto. Embora não concordemos com diversos detalhes desse livro, vemos que ele tem base bíblica em muitos aspectos importantes e oferece algumas perspectivas impressionantes sobre o tema. Porém, por se tratar de uma obra de estilo literário antigo, ele não é um livro de leitura fácil.
As Ofertas Queimadas
Muitas vezes pensamos nos sacrifícios do Antigo Testamento apenas como simbolismo da morte de Cristo. Mas há muito mais do que isso neles. Como explica Andrew Jukes, as ofertas eram “divididas em duas grandes e distintas classes — em primeiro lugar estavam as ofertas de cheiro suave, que eram todas... oblações de aceitação. Em segundo lugar, vinham aquelas ofertas que não eram de cheiro suave e que eram exigidas como expiação pelo pecado. A primeira classe, compreendia o holocausto, a oferta (de grãos) e a oferta pacífica — todas oferecidas no altar [de bronze] que ficava no Pátio do Tabernáculo. A segunda classe — as ofertas pelos pecados e transgressões — não eram consumidas no altar: algumas delas eram queimadas na terra fora do acampamento; outras eram consumidas pelo sacerdote, mas aspergindo antes o sangue para a expiação. Na primeira classe, o pecado não era levado em conta, ou seja, ela tinha a ver com o israelita fiel entregando uma oferta suave ao (Eterno)”.
“E nas ofertas pelo pecado é exatamente o contrário, pois esse tipo de oferta carregava o pecado do ofertante. Assim, na primeira classe — isto é, o holocausto, a oferta [de grãos] e a oferta pacífica — o ofertante vinha para ser aceito como adorador. Na segunda classe, as ofertas pelos pecados e transgressões, ele vem como pecador para pagar a penalidade por seus pecados e transgressões. Em ambos os casos, a oferta era sem defeito... Pois [nessa oferta de cheiro suave], o ofertante aparece como um homem em processo de perfeição, e sua oferta é provada pela fogo — isto é, pela santidade perscrutadora de Deus; e é aceita como um aroma perfumado, que sobe como uma oferenda suave ao [Eterno]. Quanto à outra oferta, o ofertante aparecia como pecador e sua oferta carregava a pena por suas ofensas” (pp. 55-56).
E no caso do holocausto, não devemos “considerar Cristo como portador do pecado, mas como um homem em processo de perfeição encontrando-se com Deus em santidade. A reflexão aqui não é que Deus ‘O fez pecado por nós’ (2 Coríntios 5:21), mas que Ele ‘nos amou e se entregou a Si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave' (Efésios 5:2). Jesus... tanto no holocausto quanto na oferta pelo pecado, continuou sendo nosso representante... Aqui temos o que nunca vamos encontrar em outro lugar — um homem entregando a Deus algo que realmente O satisfaz” (pp. 56-57). Porém, aqui não é retratada apenas a forma como Cristo viveu Sua vida na Terra há dois mil anos.
Pelo contrário, Cristo vive em nós hoje como esse mesmo holocausto. Assim, podemos nos apresentar como "sacrifícios vivos" (Romanos 12:1) — oferecendo-nos "como cheiro de suavidade e sacrifício agradável e aprazível a Deus" (Filipenses 4:18) e nos entregando completamente a Ele (comparar 2 Coríntios 8:5). E, de fato, o holocausto era totalmente consumido, simbolizando “que o adorador não deve ficar com nenhuma reserva quando se aproxima de Deus; tudo deve ser consumido no relacionamento entre Deus e o adorador sincero” (Bíblia de Estudo Thomas Nelson, nota sobre Levítico 1:3).
Evidentemente, Jesus foi o exemplo perfeito disso. Jukes explica: “O dever do homem para com Deus não é a renúncia de algo em particular, mas a entrega total de tudo... Não posso duvidar que a isso se refere essa representação quando menciona tão especificamente as partes do holocausto; pois 'a cabeça', 'a gordura', 'as pernas', 'as entranhas' estão todas enumeradas distintamente. 'A cabeça' é um simbolismo conhecido dos pensamentos; 'as pernas' é um simbolismo do caminhar; e 'as entranhas' um simbolismo recorrente dos sentimentos e das emoções do coração”.
O significado da 'gordura ou redenho' pode não estar tão óbvio, embora aqui também as Escrituras nos ajudam a encontrar a solução (Salmos 17:10; 92:14; 119:70; Deuteronômio 32:15). Isso não representa a energia apenas de um membro ou atributo, mas de toda a saúde e vigor. Tudo isso foi entregue por Jesus, e sem mancha ou defeito. Se houvesse apenas um sentimento no coração de Jesus que não estivesse rendido à vontade de Seu Pai... então Ele não poderia ter se oferecido ou ter sido aceito como 'um holocausto ao (Eterno)'. Mas, Jesus desistiu completamente de tudo. Ele não reservou nada para Si. Tudo foi queimado e consumido sobre o altar” (pp. 63-64). Esse é o mesmo objetivo pelo qual lutamos — através de Cristo vivendo Sua vida em nós hoje.