A Guerra Comercial Entre os Estados Unidos e a China
À medida que o turbulento verão de 2019 chegava ao fim em setembro no hemisfério norte, a economia mundial parecia respirar aliviada. O Ministério do Comércio da China sinalizou aos negociadores comerciais dos Estados Unidos a disposição de negociar seriamente em outubro para resolver a crescente guerra comercial entre as duas nações.
Para muitos observadores, esse pode ser o começo do fim do impasse comercial que começou em janeiro de 2018, quando o governo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, estabeleceu a primeira de uma série de tarifas — impostos que aumentam o custo das importações — contra as importações chinesas.
O efeito nas duas nações foi tudo menos positivo. Para uma economia chinesa fortemente dependente de exportações para os Estados Unidos (que continua sendo a maior economia e o maior mercado do mundo), as tarifas de importação de até 30% sobre centenas de bilhões de produtos estavam estrangulando o crescimento econômico.
Nos Estados Unidos, as bolsas de valores sofreram uma onda de volatilidade, com os investidores preocupados com o fato de as tarifas também impedirem o crescimento econômico mundial. Os consumidores desconfiam dos aumentos de preços de milhares de produtos de consumo fabricados na China. E essas tarifas também aumentam o custo de muitos produtos domésticos que usam componentes chineses.
O que há por trás de tudo isso e o que significa para o futuro?
A batalha pela supremacia econômica
Uma rápida olhada no histórico comercial das duas economias gigantes abre a porta para entender como e por que ocorreu esse confronto econômico. Após a morte do fundador da China comunista Mao Zedong, em 1976, os líderes chineses começaram a tomar medidas para modernizar sua economia centralizada e estatal. Os anos oitenta viram uma onda de reformas econômicas que incluíam algumas práticas crescentes de livre mercado, modernização da indústria e um desejo de melhorar a vida do povo chinês.
A China prometeu se tornar a maior economia do mundo, sendo o acesso aos mercados dos Estados Unidos uma parte crítica de seu plano. A nação mais populosa do mundo há muito buscava o status comercial de Nação Mais Favorecida (NMF), o que finalmente alcançou com o apoio dos Estados Unidos no final de 2001. Mas, embora esse status tenha proporcionado à China o acesso a mercados e vantagens comerciais há muito tempo cobiçadas, também exigia que a nação anuísse a práticas de comércio justo que, em grande parte, vinha ignorando.
O analista de políticas da Bloomberg News, Josh Rogin, resumiu a frustração dos formuladores de políticas dos Estados Unidos: “Havia uma crença de que a China desenvolveria uma economia privada que se mostraria compatível com o sistema da OMC [Organização Mundial do Comércio]. O governo chinês tomou uma decisão política de fazer o oposto. Então, agora temos que responder” ("Os Estados Unidos Estão Finalmente Enfrentando a Agressão Econômica da China”, The Washington Post, 25 de março de 2018).
Com seu novo status comercial de NMF, aparentemente da noite para o dia a economia chinesa começou a parecer muito mais capitalista. O incentivo fiscal do governo chinês para que outras nações invistam no país levou milhares de empresas manufatureiras a aproveitarem os baixos níveis salariais chineses e regulamentações ambientais mais brandas (a China é de longe o país mais poluente do mundo).
Nos últimos vinte e cinco anos, as exportações chinesas para os Estados Unidos dispararam. De apenas 1% das importações aos Estados Unidos em 1991, elas dobraram de 51,5 bilhões de dólares em 1996 para 102 bilhões de dólares em 2001 e, desde então, seguiram crescendo prodigiosamente. Em 2018, os Estados Unidos registraram um recorde de 540 bilhões de dólares em importações chinesas, um aumento de quase 7% em relação a 2017 e quase 60% em relação a 2008.
Em meados da década de 1990, bilhões de dólares em exportações fabricadas na China começaram a fluir para os Estados Unidos e a Europa. A China usou sua nova riqueza não apenas para melhorar a população, mas também para construir cidades e infraestrutura modernas e reluzentes. Os chineses ricos viajaram para os Estados Unidos e compraram bilhões em imóveis comerciais ali.
O lado sombrio do crescimento econômico chinês
Mas esse crescimento teve um lado sombrio, pois os militares chineses garantiram que grande parte da nova riqueza do país fosse direcionada para a criação de um exército moderno e uma marinha de classe mundial. A China tem usado essa marinha para ameaçar seus vizinhos e as principais rotas comerciais. Ele anunciou uma Zona Econômica Exclusiva (ZEE) que inclui a maior parte do Mar da China Meridional, para desgosto de seus vizinhos Taiwan, Vietnã e Filipinas, que fazem fronteira com esse mar e o utilizam amplamente.
Esse lado sombrio se estendeu aos Estados Unidos, que sofreram uma enorme perda de empregos na indústria manufatureira para a China. Os fabricantes norte-americanos fecharam centenas de fábricas, o que levou a demissão de milhões de trabalhadores. O setor industrial do centro-oeste foi o mais atingido nos Estados Unidos, onde cidades inteiras, ao perder suas principais fábricas, se tornaram praticamente cidades fantasmas. Os distritos industriais dos Estados Unidos, como Detroit, Milwaukee, Chicago, Pittsburgh e Cleveland, sentiram o impacto.
Em 2015, a situação tinha se tornado crítica. O setor manufatureiro norte-americano, sofrendo com os abusos comerciais da China, havia perdido mais de três milhões de empregos na indústria desde 2000, e a situação estava piorando. Com a China exportando quatro dólares de mercadorias para os Estados Unidos por cada dólar de exportações norte-americanas para a China, centenas de bilhões de dólares saíam do país rumo a China todos os anos, mas uma quantidade muito menor voltava para os Estados Unidos.
Em parte, os impostos de importações estrangeiras foram criados para proteger as indústrias domésticas, e os dois países têm utilizado essa tarifação ao longo dos anos. Contudo, há muito tempo a China impõe tarifas muito mais altas aos produtos estadunidenses importados para a China do que os Estados Unidos impõem contra os produtos chineses.
Por mais preocupante que esteja sendo, as práticas comerciais internacionais da China se tornaram a principal questão geradora de atritos com os Estados Unidos. Para sustentar um rápido crescimento econômico de até 9% ao ano, a China se envolveu em práticas comerciais inescrupulosas, como a exigência de compartilhamento de tecnologia das empresas norte-americanas como parte das negociações, e também o roubo de propriedade intelectual, dumping de produtos chineses nos mercados norte-americanos, grandes subsídios para empresas chinesas e outras práticas que inclinam fortemente a balança a favor da China.
Centenas de bilhões de dólares em perdas econômicas
Dumping significa a venda de mercadorias em mercados estrangeiros abaixo do custo de produção para ganhar participação de mercado. Ao cobrir os lucrativos mercados dos Estados Unidos e da Europa, a China, através da prática do dumping, comercializou neles produtos como tubos de aço, peças de máquinas, peças de ferro fundido e alumínio, devastando os fabricantes norte-americanos. A Organização Mundial do Comércio, à qual a China aderiu em 2001, há muito tempo exige que a China corrija essas práticas — demandas que, em grande parte, os políticos chineses ignoraram.
Particularmente lamentável tem sido o roubo de propriedade intelectual, uma prática que rouba bilhões de dólares por ano de empresas criativas e inovadoras dos Estados Unidos. O Serviço de Alfândega dos Estados Unidos estima que 87% dos produtos falsificados apreendidos nos portos estadunidenses são originários da China. Um relatório da CNN de março de 2018 citou prejuízos de 225 a 600 bilhões de dólares anualmente com as perdas de propriedade intelectual de tecnologia norte-americana e de outras empresas.
Essas práticas levaram à perda de quase 3,4 milhões de empregos nos Estados Unidos de 2001 a 2017, segundo um relatório, de outubro de 2018, do Instituto de Política Econômica (EPI, sigla em inglês). Determinadas indústrias, como a eletrônica, a têxtil, a de vestuário e alguns bens duráveis mais pesados, foram especialmente afetadas. E embora as perdas de emprego tenham sido mais fortes na Califórnia, no Texas e no centro-oeste industrial, elas também ocorreram em quase todos os estados e distritos congressionais dos Estados Unidos.
Os trabalhadores que tiveram a sorte de manter seus empregos viram seu poder de barganha salarial diminuir devido à concorrência chinesa barata. O relatório do EPI constatou que a estagnação salarial é um dos principais fatores que contribuem para a redução dos padrões de vida e uma crescente disparidade de desigualdade, especialmente entre os trabalhadores mais velhos. A desigualdade econômica é algo que o meio acadêmico norte-americano e a mídia há muito tempo criticam, mas que o globalismo — defendido pela mesma mídia e meio acadêmico — tende a promover.
O início da guerra de tarifas
Em 2016, na campanha presidencial norte-americana, Donald Trump atacou esses abusos e prometeu resolver o problema se eleito. Isso o levou a angariar centenas de milhares de votos em estados industrializados como Michigan, Ohio, Wisconsin e Pensilvânia, estados particularmente afetados pela perda de empregos na indústria.
No começo de 2018, o governo Trump seguiu tarifando máquinas de lavar e painéis solares fabricados na China, produtos que ela era acusada de praticar dumping. As tarifas do aço e alumínio seguiram sendo aplicadas em março. A China respondeu tarifando os produtos norte-americanos e, desde então, o governo Trump e o governo chinês têm aplicado tarifas adicionais há mais de um ano. Na última rodada de tarifação, novas tarifas de até 15% foram impostas em 1º de setembro, uma tarifação adicional de 325 bilhões de dólares, pelos Estados Unidos sobre as importações chinesas.
Trump e seus negociadores comerciais norte-americanos estão contando com uma simples realidade — que os chineses, que se beneficiam quatro vezes mais com o comércio com os Estados Unidos, logo sentiriam a crescente e dura pressão das tarifas.
Washington quer um acordo em que a China reduza os subsídios às indústrias e à produção de commodities, como o aço e o alumínio, onde a superprodução está achatando os preços globais, e também que pare de pressionar as empresas norte-americanas a entregarem sua tecnologia proprietária como condição para fazer negócios na China. O governo também gostaria de ver um aumento nas compras de bens e serviços dos Estados Unidos e um fortalecimento da moeda chinesa, o yuan, que a China desvalorizou para obter vantagens no comércio internacional.
E parecia que a China estava sinalizando um desejo de diminuir o impasse comercial no verão passado, concordando em restaurar algumas de suas importações de commodities agrícolas estadunidenses e outros bens dos Estados Unidos. Mas quando o presidente chinês Xi Jinping renunciou ao acordo, o presidente Trump anunciou a nova rodada de tarifas sobre produtos chineses, afetando praticamente todas as importações chinesas remanescentes que antes não estavam sujeitas às tarifas. Em resposta, as autoridades do banco central chinês tomaram medidas para enfraquecer o yuan, em um esforço para estancar parte da desaceleração das exportações.
Agora, quase dois anos desde seu início, a guerra comercial cobra seu preço. Desde meados de 2018, a economia chinesa contraiu-se lentamente, crescendo a um ritmo mais lento desde 1992. Centenas de empresas que se estabeleceram na China para aproveitar os baixos custos trabalhistas chineses deixaram o país ou estão ameaçando sair. Na tentativa de preparar seu país para uma luta comercial de longo prazo, Xi Jinping chamou a nação na primavera passada a uma nova "longa marcha", aludindo ao apelo de Mao Tsé-Tung em 1935 à resistência de seu povo aos japoneses invasores. Então, os líderes chineses começaram a se preocupar.
A Casa Branca sinalizou que também está preparada para uma batalha de longo prazo. "Eu penso como eles, também tenho um horizonte a longo prazo”, disse o presidente Trump à agência de notícias Reuters, acrescentando que “não há prazo” para encerrar essa disputa comercial. Embora, muitas vezes essa abordagem do presidente seja criticada, muitos considerem que ela é apropriada para essa guerra comercial, e outros defendem que essa posição é uma estratégia que visa manter a China desequilibrada, sem saber qual será o próximo passo nos Estados Unidos.
O governo chinês tem muitos motivos para querer que a disputa seja resolvida rapidamente. O governo chinês sabe que um conflito comercial prolongado prejudicaria economicamente o país e complicaria seus planos de transformá-lo de uma economia manufatureira de baixos salários a uma líder global em alta tecnologia. Há rumores de que Xi instruiu seus representantes a estabilizar o relacionamento com os Estados Unidos o mais rápido possível.
O que vem a seguir?
Essa batalha de titãs ainda pode recrudescer. Não é preciso dizer que a classe empresarial dos Estados Unidos não está empolgada com a perspectiva de haver ainda mais barreiras no comércio com a China, um país que fornece uma variedade surpreendente de matérias-primas e produtos acabados. Embora, os importadores dos Estados Unidos tenham absorvido totalmente a rodada das primeiras tarifas, eles sinalizaram que a maioria dessas tarifas adicionais de 10% a 15% será repassada aos consumidores norte-americanos na forma de aumento nos preços de roupas, eletrônicos, brinquedos e centenas de outros produtos de consumo.
Os varejistas norte-americanos, já pressionados pelo crescimento das compras pela Internet, vão sentir mais pressão à medida que haja desaceleração nos negócios. Alguns não sobreviverão e a maioria será forçada a reduzir o quadro de pessoal e o estoque. De qualquer forma, o resultado pode ser uma perda substancial de empregos já no início de 2020.
Provavelmente, na China a situação será ainda pior. A última rodada de tarifas sobre quase 325 bilhões de dólares em importações chinesas, além das já impostas sobre cerca de 250 bilhões de dólares em produtos chineses. Isso vai custar milhões de empregos e a situação vai piorar se centenas de fábricas decidirem encerrar suas operações na China e se mudar para outras nações, como Vietnã ou Filipinas.
Será que isso poderia levar a um delongado rearranjo das cadeias de suprimentos globais, que levaram décadas para serem criadas? Muitos produtos, como telefones celulares, câmeras digitais e laptops, são montados na China com peças vindas de todo o mundo. Os economistas entendem que uma mudança assim pode atrapalhar as cadeias de suprimentos espalhadas por grande parte da Ásia e do mundo. A produção do iPhone da Apple, por exemplo, envolve quase duzentos grandes fornecedores, que entregam peças na China para montagem final do produto.
Nesta perspectiva, o preço para os consumidores norte-americanos do iPhone XS da Apple pode ter uma aumento de 160 dólares se a tarifa de 25% entrar em vigor. Os Estados Unidos compartilhariam essa aflição por causa da retração nas vendas desse aparelho, pois não apenas os varejistas serão afetados, mas também as empresas de suporte a jusante.
Sem dúvida, os consumidores vão sentir o impacto dos preços mais altos nesses itens. Embora o Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR, sigla em inglês) tenha excluído muitos produtos que têm a China como a principal fonte, as novas tarifas serão aplicadas a mais de 40% aos produtos de consumo, acima dos 25% das tarifas anteriores relativos principalmente a produtos industrializados. E como os gastos do consumidor representam quase 70% da economia norte-americana, fica fácil perceber que os preços mais altos podem levar a uma desaceleração gradual da atividade econômica dos Estados Unidos.
Em todo o mundo, espera-se que ambas as nações recuem ao se aproximarem do precipício econômico. Os Estados Unidos esperam que a China elimine ou facilite suas políticas comerciais restritivas e injustas. A China espera que os consumidores e fabricantes dos Estados Unidos sintam a dor do aumento de preços a ponto de pressionar Washington a aliviar ou eliminar essas tarifas crescentes. Em Pequim, os líderes chineses acompanham de perto a aproximação das eleições de 2020 nos Estados Unidos, esperando que Donald Trump não seja reeleito e que um novo governo retire a dura posição comercial e retorne aos amigáveis acordos com a China dos anos anteriores.
E mesmo se houver um acordo, será que o governo chinês cumprirá seus termos? Por muitas vezes, a China descumpriu acordos comerciais anteriores e tem sido evasiva quanto ao compromisso de conter o roubo de propriedade intelectual. Assim, os Estados Unidos precisariam continuar com a ameaça de sanções econômicas.
Em todo caso, qualquer acordo alcançado provavelmente não impediria a China de manter seu objetivo de longo prazo: a supremacia econômica global. Os líderes chineses não aceitarão o que consideram humilhação econômica, e é provável que Xi Jinping não vai recuar e aceitar o que ele considera um acordo duro.
O fim do ano de 2019 se aproxima e os Estados Unidos e a China, como dois grandes lutadores de sumô, rodeiam um ao outro na luta pela supremacia econômica global. Talvez apenas o contínuo potencial de eventos catastróficos como uma guerra nuclear represente uma ameaça maior ao bem-estar de milhões de pessoas. Se os negociadores comerciais da China e dos Estados Unidos não chegarem a um acordo em breve, é quase certo que os dois países sentirão perdas econômicas generalizadas — uma dor que se espalhará para o resto da economia global e levará a uma piora das condições em todo o mundo.