Comentário Bíblico
Deuteronômio 6
Deus é Um?
Por muitos séculos, Deuteronômio 6:4-9 foi conhecido entre os judeus como Shemá. Essa palavra hebraica, que significa "ouvir", é a primeira palavra do versículo 4. Continuando no versículo 4, lemos que Deus é "único". Muitas pessoas, inclusive os judeus, tradicionalmente têm entendido esse versículo como unicidade, ou seja, que Deus consiste em apenas um Ser. Contudo, sabemos que Deus consiste em dois Seres, Deus e o Verbo (João 1:1), posteriormente chamado de Pai e Jesus Cristo (comparar versículo 14). Deus disse em Gênesis 1:26: "Façamos o homem à Nossa imagem", demostrando que Deus consiste em mais de uma pessoa. A palavra hebraica para Deus, Elohim, é plural e denota a família de Deus. Efésios 3:14-15 não apenas confirma que Deus é uma família, mas também que Ele está num processo de expandir Sua família por meio de cristãos convertidos — Seus filhos gerados, que aguardam a glorificação como seres espirituais divinos como Ele (1 João 3:1-2). É interessante como a versão Bíblia Livre Para Todos traduz Hebreus 2:11: "Pois tanto aquele que torna as pessoas puras, quanto aqueles que são purificados pertencem à mesma família”.
Então, o que Deuteronômio 6:4 está dizendo? Primeiramente, é preciso saber que a palavra "único" no sentido de singularidade provavelmente não é o que o hebraico original pretende transmitir aqui. Na verdade, isso poderia ser entendido como único em prioridade — significando que Deus deve ser a primeira e maior prioridade de nossas vidas. Algumas versões da Bíblia traduzem a frase em questão como: "O SENHOR é nosso Deus, o SENHOR somente". Nesse sentido, a proibição é contra a adoração de outros deuses. Embora a palavra SENHOR geralmente se refere Àquele que se tornou Jesus Cristo, pois foi Ele que lidou com Israel (comparar 1 Coríntios 10:4), esta passagem não nega a existência do Pai. O nome YAHWEH, que tem o sentido de "Eterno", é traduzido como "SENHOR" em quase todas as versões da Bíblia em português e também poderia se referir a Deus Pai (comparar Salmos 110:1). Obviamente, Israel não sabia da existência do Pai. Então, Cristo veio para revelá-Lo (Mateus 11:27; João 1:18; 17:25-26).
Contudo, Deuteronômio 6:4 poderia ser traduzido como "o SENHOR é um". E se for esse o caso, então precisamos perguntar: Como Deus é um? A resposta pode ser encontrada em João 17, onde Cristo orou ao Pai acerca de Seus discípulos: "E Eu dei-lhes a glória que a Mim Me deste, para que sejam um, como Nós somos um" (versículo 22). Assim, Deus realmente é um — em unidade de mentalidade e propósito compartilhada pelo Pai e Cristo, a qual desejam que compartilhemos com Eles. Mas, obviamente, Eles não são um único ser — assim como o povo de Deus não é único um ser.
Assim como Deuteronômio 6:8 deve ser entendido metaforicamente — o ato de selar as instruções de Deus em nossas mãos (ou seja, em nossas ações) e entre nossos olhos (ou seja, em nossas mentes). Mas, posteriormente, os judeus tentaram obedecer a essa escritura de forma literal, escrevendo quatro passagens (Deuteronômio 6:4-9; Êxodo 13:1-10; Deuteronômio 11:13-21 e Êxodo 13:11-16) em pequenos pergaminhos — e colocando-os em bolsas de couro e prendendo-os em suas testas e braços esquerdos enquanto recitavam o Shemá. Essa é a origem dos filactérios (referidos em Mateus 23:5).
Obediência aos Mandamentos de Deus
Somos então apresentados a um dos dois grandes mandamentos da lei: "Amarás, pois, o SENHOR, Teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu poder" (Deuteronômio 6:5; comparar Mateus 22:36-38). Cristo deixou claro que esse é "o primeiro e grande mandamento", mas que o segundo ("Amarás o teu próximo como a ti mesmo") é "semelhante" ao primeiro (versículo 39, citando Levítico 19:18). Ele explicou que toda a lei de Deus está resumida nesses dois mandamentos (ver Mateus 22:40). Isso é compreensível, pois os quatro primeiros mandamentos explicam como amar a Deus, enquanto os últimos seis nos dizem como amar o próximo. Por sua vez, os estatutos e juízos (comparar Deuteronômio 4:13-14) expandem e estabelecem mais detalhadamente a aplicação prática dos Dez Mandamentos em nossas vidas diárias. E os ensinamentos de Cristo no Novo Testamento — uma ampliação da lei (ver Isaías 42:21) — ampliam ainda mais os Dez Mandamentos, os estatutos e os juízos quando nos mostrar como viver de acordo com sua intenção espiritual. (Por exemplo, em Mateus 5:21-22, Jesus afirmou que odiar alguém é tão errado quanto assassinar, pois o ódio descontrolado pode, em última análise, levar ao assassinato).
Os versículos 6-9 enfatizam a necessidade premente de ensinar aos filhos as verdades de Deus, entregando sobretudo aos pais a responsabilidade de fazer isso. Muitas vezes, os pais são negligentes quanto a isso e os filhos crescem sem a orientação adequada. Essa passagem mostra que os pais são ordenados a transmitir aos filhos essa segurança e confiança na Palavra de Deus. As leis e os caminhos de Deus devem ser ensinados diariamente. Em relação a frase "ensine-as com persistência a seus filhos" no versículo 7 (NVI), o Adam Clarke's Commentary (Comentário Bíblico de Adam Clarke) observa que no hebraico esse termo significa "'repetir, iterar ou fazer uma coisa repetidamente'; tal como afiar uma ferramenta através da fricção ou atrito reiterado" (grifo nosso). Isso aponta para o grande valor do estudo bíblico e da oração em família. E os princípios bíblicos devem ser mencionados informalmente assim que surgir qualquer oportunidade — sempre que houver uma maneira de conectar a vida diária e as atitudes com os ensinamentos da Bíblia. Uma dessas oportunidades é quando vocês estão juntos — sentados, caminhando, andando de carro, comendo juntos, etc. outra oportunidade é quando surge uma pergunta ou problema e os pais podem apontar para a Bíblia para buscar entendimento e solução. Ademais, começar e terminar cada dia falando e orando a Deus é muito valoroso para as famílias.
Como Israel era uma nação carnal, Deus ordenou que escrevessem os mandamentos nos umbrais de suas casas (Deuteronômio 6:9). Embora não seja errado para um cristão fazer isso hoje, não é obrigatório, pois a lei de Deus deve ser escrita num lugar muito mais importante: em nossos corações. Deus também desejou isso para a antiga Israel (versículo 6), mas Ele sabia que sem Seu Espírito dentro deles não seria possível (comparar Deuteronômio 31:21, 29:4). Embora os adultos possam não sentir necessidade de lembretes físicos ou recursos visuais, como ilustrado pelos versículos 8-9, geralmente isso é útil para as crianças.
E no versículo 15, Deus se descreve como um "Deus zeloso", como em Êxodo 34:14. Deus exige nossa absoluta lealdade e fidelidade a Ele. Mas isso não é para Si mesmo — porque Ele apenas absorve nossa adoração. Então, pôr outras coisas antes do Deus verdadeiro em nossas vidas é prejudicial e destrutivo para nós mesmos e para os outros. E Deus sabe muito bem disso. E se todos direcionassem seu afeto para Ele — o Deus do amor — acima de tudo, haveria paz e felicidade verdadeiras em todo o mundo. Então, o zelo de Deus não para si mesmo — mas para nós.
Hoje em dia, alguns dizem que tudo o que precisamos é da "justiça da fé" — isto é, enquanto crermos em Cristo, seremos justificados ou "tornados justos", independentemente de como vivemos. Mas Moisés disse a Israel algo bem diferente. Em Deuteronômio 6:25, lemos: "Será por nós justiça, quando tivermos cuidado de cumprir todos estes mandamentos perante o SENHOR, nosso Deus, como nos tem ordenado" (ARA). O Salmo 119, uma ode à observância da lei de Deus, que é tradicionalmente atribuída ao rei Davi, define todos os mandamentos de Deus como justiça (Salmos 119:172). Afinal de contas, a fé sem obras é morta (Tiago 2:14; 2:20). Seremos recompensados segundo nossas obras, e devemos praticar "obediência da fé" (Romanos 1:5; 16:26). Quando pecamos, Cristo nos perdoa mediante arrependimento e nos justifica ou nos torna justos (1 João 1:7-9). Mas somos instruídos a não pecar — esse deve ser nosso principal objetivo (Mateus 6:33; Romanos 6:15; 1 João 2:1). E como "o pecado é a transgressão da lei " (1 João 3:4, ARA), permanecemos justos se não pecarmos. Mas ninguém pode guardar a lei de Deus por conta própria — precisamos da ajuda do Cristo vivo em nós para vencer o pecado. E é por isso que lemos: " E assim [Cristo] condenou o pecado na carne, a fim de que as justas exigências da lei fossem plenamente satisfeitas em nós, que não vivemos segundo a carne, mas segundo o Espírito... E, se alguém não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo... porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus" (Romanos 8:3-4; 8:9; 8:14, NVI).