Como a Graça Era Entendida no Tempo e na Cultura dos Apóstolos

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Como a Graça Era Entendida no Tempo e na Cultura dos Apóstolos

Uma excelente explicação de como a “graça” teria sido entendida pelos leitores de Paulo vem do livro Misreading Scripture With Western Eyes: Removing Cultural Blinders to Better Understand the Bible [A Má Interpretação das Escrituras Sob a Ótica Ocidental: Removendo as Cortinas Culturais Para Entender Melhor a Bíblia, em tradução livre]. Os autores, Randolph Richards e Brandon O’Brien, descrevem uma situação hipotética, mas típica daquela época (pp. 162-164):

“Imagine um jovem padeiro chamado Marcus na cidade de Filipos. Marcus aprendeu com o pai a fazer pão. O negócio da família remontam à fundação da cidade de Filipos, cinco gerações atrás. A família de Marcus era, consequentemente, um dos membros fundadores da guilda dos padeiros. Cem anos atrás, seu ancestral havia se aposentado do exército romano . . . Como recompensa, sua família . . . recebeu a cidadania romana e terreno em Filipos . . .

“Quando o pai dele era jovem . . . um incêndio destruiu a padaria da família. O pai de Marcus procurou a ajuda de uma viúva rica, comerciante de tecidos que também era da província de Lídia. Júlia Lídia emprestou ao pai dele o dinheiro para reconstruir a padaria. Assim começou um relacionamento duradouro. Hoje, Marcus vende todo o seu pão à Lídia, incluindo todos os membros da família extensa dela . . . além de todos os outros ‘amigos’ dela (os diversos comerciantes com quem a Lídia negocia). Esses clientes dão a Marcus todos o negócio que ele e seus filhos pequenos podem. Ele vende seu pão a um preço razoável e sua família vive bem (embora modestamente). Lídia se assegura de que nenhum explore o outro . . .

“Passados três anos, os vendedores de cevada aumentaram seus preços. Todos os padeiros entraram em pânico. Naturalmente, Marcus pediu ajuda à sua patrona. Ela convidou o patrono dos comerciantes de cevada para um jantar. Durante a refeição cordial, a Lídia disse que seu amigo Marcus está em situação difícil. Os dois patronos discutiram como poderiam ajudar melhor os amigos, chegando a um preço justo pela farinha de cevada . . . Júlia fez o que era adequado como patrona de Marcus, o padeiro.

“É claro que esses relacionamentos eram bilaterais. No ano passado um ano, um dos escravos de Lídia acordou Marcus no meio da noite. Lídia precisava de um favor, pois receberia convidados especiais e precisava preparar um fino jantar para algumas famílias ricas de Filipos e para isso ela precisava de pães especiais para servir nesse importante banquete . . . Ela precisava de Marcus para cozinhar algo exclusivo. Como ele poderia recusar o pedido de sua patrona? Demorou a noite toda, mas ele garantiu que o pão ficasse pronto.

"As ‘regras’ para o que se esperava de uma relação patrono-cliente não estavam escritas nas muralhas da cidade romana . . . As regras para as instituições verdadeiramente básicas da sociedade, como da família e do patrocínio [mecenato] não precisavam ser escritas. Todos sabiam qual era a conduta apropriada. Um bom patrono resolvia os problemas de seus clientes, ajudando com associações comerciais, disputas de negócios, e refinanciando empréstimos e aliviando as tensões com autoridades da cidade . . . O patrono fazia favores para seus clientes, que então entravam em seu círculo de influência e proteção. Em contrapartida, esperava-se que o cliente fosse leal (fiel) e, às vezes, era chamado para fazer algumas coisas para o patrono”.

Neste exemplo, vemos as obrigações de ambas as partes envolvidas no relacionamento patrono-cliente. O cliente, a família de Marcus, estava em uma situação desesperadora. Esta família procurou a ajuda de um patrono generoso, que estendeu aos membros da família um presente inestimável — conhecido como charis, ou "graça" — que eles nunca poderiam retribuir, permitindo-lhes reconstruir seus negócios e suas vidas.

Ambas as partes entenderam que aquele que recebe charis, ou graça, nunca poderá retribuir o presente recebido. Porém, entendiam que aceitar o presente gerava uma obrigação do receptor em relação àquele que o entregava — que haveria sempre a obrigação de fazer o que o doador pedisse e sempre agir visando os melhores interesses do doador.

O apóstolo Paulo usa essa bem compreendida norma e prática cultural para nos ajudar a entender a grandeza do amor e bondade de Deus para conosco, que nos estendeu Sua charis ou "graça" — o perdão dos pecados, o dom da vida eterna e todas Suas outras bênçãos.

E também é evidente a outra face da moeda — que em troca do inestimável dom da graça divina, nos tornamos equivalentes aos clientes de Deus — ou seja, que somos obrigados a demonstrar lealdade e fé a Deus e a fazer o que Ele nos pede. Em termos bíblicos, isso é o que a Bíblia se refere como pistis — traduzido como ou fidelidade. Assim como a palavra charis, Paulo usa essa palavra mais de cem vezes em suas epístolas preservadas para nós na Bíblia.

Richards e O’Brien continuam resumindo a relação entre essas palavras e o que isso significa para o relacionamento de um cristão com Deus:

“O patrocínio tinha seu próprio vocabulário. Essas palavras, que geralmente consideramos como termos particularmente cristãos — graça e — eram utilizadas na linguagem comum antes de Paulo as mencionar [em suas cartas]. Os presentes imerecidos de socorro que o patrono oferecia eram comumente chamados de charis ('graça' e 'dom'): A lealdade que o cliente oferecia ao patrono em contrapartida era chamada de pistis ('fé' e 'fidelidade'). Os filósofos romanos observaram que quando alguém recebia o favor (charis) de um deus, devia corresponder com amor, alegria e esperança. Quando Paulo procurou explicar o novo relacionamento do cristão com Deus, uma das maneiras que ele utilizou diz respeito aos termos do antigo sistema de patrocínio — algo que todos entendiam. Em outras palavras, não foi nem preciso dizer que um relacionamento era o determinante e principal aspecto da charis, da graça” (p. 166, grifo nosso).

O Dr. David deSilva, professor de grego e do Novo Testamento e especialista na cultura do primeiro século, enfatiza a obrigação do receptor da graça de agir de modo que demonstre gratidão e apreço pelo que recebeu. Em seu livro An Introduction to the New Testament: Contexts, Methods and Ministry Formation [Uma Introdução ao Novo Testamento: Contextos, Métodos e Formação de Ministério, em tradução livre], ele escreve:

“Quanto maior o benefício concedido maior deve ser a resposta de gratidão. No mundo antigo, a gratidão envolvia primeiramente a demonstração de respeito pelo benfeitor . . . , agindo de maneira a destacar sua honra e, certamente, evitando qualquer situação que lhe traga desonra . . . A gratidão também envolve intensa lealdade pessoal ao patrono . . . Esse é o nível de gratidão e lealdade que os autores do Novo Testamento afirmam que devem ser dados a Jesus e, através dEle, a Deus. A “graça”, portanto, tem significados muito específicos para os autores e leitores do Novo Testamento . . .” (2018, pp. 103-104).

O Dr. DeSilva continua: “A resposta adequada para com o patrono é a gratidão: Demonstrando respeito, lealdade, testemunho e serviço ao patrono. O favor divino busca uma resposta de fidelidade (pistis) e serviço dos clientes de Deus. Paulo fala, por exemplo, da "obediência da fé" (Romanos 1:5; 16:26) como o objetivo de sua missão, solicitada como a resposta adequada daqueles que se beneficiaram do dom de Deus.

“Aqueles que recebem o favor de Deus são chamados a oferecer todo o seu ser a serviço de Deus e a fazer o que é justo aos olhos de Deus (Romanos 6:1-14; 12:1). Essa resposta não diz respeito a apenas honrar a Deus, mas também ao amor, à generosidade e o serviço leal aos irmãos (Romanos 13:9-10; Gálatas 5:13-14; 6:2). O escritor de Hebreus também clama aos cristãos a permanecerem firmes em sua confiança e lealdade (Hebreus 10:35-39; 11), a tomar muito cuidado para não desonrar o Doador nem demonstrar desprezo pelo presente recebido a esse custo . . . Embora o favor de Deus seja gratuito e voluntário, o ouvinte do primeiro século sabia que aceitar um presente também significava aceitar espontaneamente a obrigação de corresponder adequadamente” (pp. 106-107).

Sem dúvida, a graça é um incrível dom de Deus — um presente que nunca poderemos retribuir totalmente e que nos obriga a comprometer nossa vida a serviço de Deus e a viver de uma maneira que agrada a Ele.