Qual Era o Significado da “Graça” no Mundo do Primeiro Século?
“E Deus é poderoso para tornar abundante em vós toda graça, a fim de que, tendo sempre, em tudo, toda suficiência, superabundeis em toda boa obra” (2 Coríntios 9:8).
As palavras têm seus significados. Algumas palavras são difíceis de entender quando estão muito distantes de seu contexto original. Por outro lado, o atual significado do termo graça — originário de uma tradução da palavra grega charis — é bastante diferente de seu sentido original nos tempos greco-romanos, época em que Paulo e os outros apóstolos e escritores do Novo Testamento viveram e agiram.
Paulo utilizou a palavra charis mais de cem vezes em suas cartas a indivíduos e diferentes congregações de todo o Império Romano. Os gregos e romanos conversos, ao lerem ou ouvirem essa palavra, a entendiam num contexto muito diferente do século XXI. E a compreensão deles sobre o que Paulo e outros queriam dizer com "a graça de Deus" provavelmente era bem diferente da nossa. Compreender esse contexto do primeiro século ajuda a compreender o significado de estar sob a graça para um seguidor de Jesus Cristo. Vamos ver o motivo.
Como uma palavra independente na Bíblia, charis (graça) poderia ser usada como uma saudação com elevado significado (“A graça e a paz estejam com você”), como um descritor de como Deus transmite um favor poderoso, como uma expressão de um ato divino imerecido e até mais. Isso pode não parecer estranho para nós. Mas, para os ouvidos de um cidadão greco-romano ou de um judeu de língua grega que ouviria ou leria essa palavra em um contexto bíblico, o significado descreveria algo que, provavelmente, não consideramos hoje — um poderoso relacionamento entre um doador de presentes e os destinatários desses presentes. Qual o ponto disso? Frequentemente, Paulo e outros escritores do Novo Testamento refletiam esse significado quando mencionavam a palavra charis (graça). Aprender mais sobre esse relacionamento nos traz muito mais compreensão do significado da graça nas Escrituras.
Patronos e clientes
Aqui estão alguns antecedentes fundamentais. No tempo de Jesus e dos apóstolos, existia um sistema conhecido como “patrocínio” no Império Romano — o cenário físico e cultural em que foi escrita grande parte do Novo Testamento.
No século XXI, a palavra patrocínio geralmente evoca um sentimento de nepotismo vulgar ou presentes ocultos obtidos de maneira desagradável (como em “patrocínio político”, onde presentes podem ser dados em troca de atos ilegais ou inapropriados).
Embora esse patrocínio político também existisse no tempo de Paulo, ele geralmente significava algo muito diferente na época. Quando ouviam a palavra charis, os cidadãos do Império Romano a entendiam de forma positiva. Além de significar presente imerecido, uma situação envolvendo charis (graça) seria normalmente considerada um bom relacionamento com benefícios mútuos e duradouros, expectativas e um novo conjunto de dinâmicas poderosas.
Aqui está um contraste para se considerar: Em nosso mundo moderno, se alguém quiser iniciar um negócio ou construir uma casa, provavelmente, iria a um banco (ou instituição similar) para garantir um empréstimo. A expectativa seria que o empréstimo fosse pago com juros. No mundo greco-romano do primeiro século, não existia bancos sofisticados como os que conhecemos hoje. Na sociedade romana, a riqueza estava concentrada em cerca de 4% da população. Essas pessoas eram os aristocratas ricos da classe alta, conhecidos como patrícios. Os cidadãos comuns e mais pobres eram chamados de plebeus.
Muitas vezes, os agiotas ricos se aproveitavam das pessoas e cobravam juros altos. Mas havia outra maneira melhor de se receber ajuda para progredir na vida. Um plebeu que procura assistência financeira ou ajuda semelhante, como para conseguir um emprego, talvez pudesse encontrar uma pessoa rica para começar um relacionamento com charis (graça) — a concessão de um benefício ou presente imerecido da pessoa abastada para a pessoa carente. A pessoa que fornecia o dinheiro, apoio ou benefício era conhecida como patrono (do latim, patronus). A pessoa que recebia o dinheiro ou o apoio era então conhecida como cliente (do latim, cliens).
Esse patrocínio fazia parte da vida da Igreja primitiva. Por exemplo, não existia nenhum edifício da “igreja” durante as primeiras décadas após a morte e ressurreição de Jesus. Alguns membros da Igreja primitiva serviram como patronos espirituais e físicos, abrindo suas próprias casas para as reuniões e cultos no Sábado.
Inclusive, Paulo se refere à diaconisa Febe como "uma patrona de muitos e de mim também" (Romanos 16:1-2, Bíblia Versão Padrão Inglesa) — indicando sua atitude generosa e serviço a todos. Os escritos dos livros de Lucas e Atos foram, evidentemente, apoiados por um patrono chamado Teófilo (ver Lucas 1:1-4; Atos 1:1).
Um relacionamento duradouro e com papéis definidos
Ser cliente de um patrono na sociedade greco-romana não era um compromisso simples. Segundo as regras da sociedade (registradas por vários cidadãos influentes da época, inclusive notáveis romanos como Tácito e Cícero), quando um novo cliente entrava em um relacionamento de dependência com um patrono romano, ele entrava em um acordo e relacionamento “baseado na confiança mútua e lealdade” (Paulo no Mundo Greco-Romano: Um Compêndio, Paul Sampley, Vol. 2, 2016, p. 206).
Uma vez que o contrato social foi realizado, um novo conjunto de dinâmicas entrava em jogo. Esperava-se que o novo cliente “mostrasse respeito e gratidão ao patrono para prestar-lhe certos serviços...e apoiar suas atividades políticas, econômicas e sociais” (ibid.).
O que o patrono faria pelo cliente? "O influente patrono protegia os interesses econômicos, sociais e legais do cliente, permitindo-lhe lucrar com as conexões sociais do patrono e permitindo-lhe acesso aos seus recursos" (ibid.).
Em suma, o novo cliente poderia receber o financiamento necessário ou outros benefícios importantes, mas agora estava em um contínuo relacionamento com o patrono, que esperava certa predisposição mental de seus clientes, bem como atos de gratidão (obras) em troca.
O livro Relational Grace: The Reciprocal and Binding Covenant of Charis explica desta maneira em sua introdução: “Charis (graça) é a palavra dos autores do Novo Testamento, especialmente Paulo, às vezes usada para explicar o dom de Cristo para as pessoas. Mas qual é a natureza desse dom? Desde o século V, vários estudiosos cristãos ensinaram que a graça é algo concedido livremente por Deus, com pouco ou nada em troca...[No entanto], 'a graça sem obrigações' não é o que Paulo e outros pretendiam dizer.
“A prática no mundo antigo de conceder e receber favores e presentes vinha com obrigações claras. Charis serviu aos autores do Novo Testamento como um modelo para a misericórdia de Deus através da expiação de Jesus Cristo, que também vem com as obrigações da aliança . . .
“Ser salvo pela graça significa vir a Cristo, ser batizado, unir-se à comunidade de santos [ou cristãos] e viver agradecendo e louvando continuamente pelo dom de Deus. Todas essas expressões da graça são encontradas no uso grego e paulino dessa palavra. Saber o que significa charis nos ajuda a entender o que Deus espera que façamos depois de aceitarmos sua graça” (Brent Schmidt, 2015, contracapa).
A graça e a fé
Quais eram os benefícios desse relacionamento para o patrono e o cliente? A charis (a boa dádiva, traduzido como graça) seria feito com o entendimento de que o presente nunca poderia ser reembolsado (no sentido de pagamento de um empréstimo). A expectativa do patrono era que o cliente mantivesse um alto grau de lealdade e gratidão em relação a ele. Esse aspecto do relacionamento está contido na palavra grega pistis, que é a mesma palavra traduzida como fé e fidelidade nas versões portuguesas do Novo Testamento.
Em outras palavras, um cliente sob o sistema do patronato romano receberia um presente (charis) que, provavelmente, nunca poderia ser totalmente reembolsado em dinheiro ou mercadorias. O papel do cliente era demonstrar lealdade e fidelidade (pistis), inclusive demonstrações públicas de gratidão. O exercício da pistis reflete uma grata confiança — uma fé poderosa, enérgica e viva — de que o patrono realmente fará o que promete. Essa relação de charis foi importante para a sobrevivência e o progresso do mundo greco-romano do primeiro século — e, como confirmam os historiadores, essa prática era generalizada.
O que pode ser um desafio para um leitor da Bíblia do século XXI é o seguinte: Qualquer romano ou grego do primeiro século ou mesmo um cristão judeu naquele mundo, que lia ou ouvia a leitura de uma carta de Paulo ou de outros apóstolos mencionando a palavra grega charis, compreendia imediatamente essa palavra como um relacionamento entre um patrono e um cliente.
Portanto, é importante diferenciar o significado da graça no primeiro século em relação à época do patrono da definição que há no século XXI.
Também é importante entender que o complexo relacionamento formalizado na entrega da charis ou graça demonstrava que a mesma não era uma mera transação. O ato de dar e receber charis no primeiro século criava um relacionamento poderoso e dinâmico — uma conexão positiva que durava toda a vida. No Novo Testamento, esse relacionamento de charis é enfatizado pela fé ou confiança no aspecto humano, conforme expresso em Hebreus 11:6, pois é necessário “crer que Ele [Deus] existe e que recompensa àqueles que o buscam” (NVI) — e deve haver contínua fidelidade. (Para entender mais sobre isso, ler “Como a Graça Era Entendida no Tempo e na Cultura dos Apóstolos”).
A resposta apropriada para se receber graça
Quando o Novo Testamento menciona a graça, ele reflete elementos e aplicações desse sistema de patronato. Esse entendimento traz o verdadeiro poder e obrigações de um relacionamento cheio de graça com Deus. A analogia cultural é clara e se traduz muito bem em nossos dias: Deus age como nosso patrono divino, dando-nos um perdão imerecido, um favor e o incomparável dom da vida eterna, que não podemos retribuir.
Então, como clientes, o que devemos fazer em troca? O Dr. David deSilva, professor de grego e do Novo Testamento e perito da cultura do primeiro século, explica no artigo "Graça" do Eerdmans Dictionary of the Bible o que era esperado dos clientes de um patrono na época e como isso se aplica hoje:
". . . A resposta adequada daqueles que se beneficiaram do dom de Deus... envolve a oferta de todo o seu ser a serviço de Deus, para fazer o que é justo aos olhos dEle (Romanos 12:1; 6:1-14). Como no [Antigo Testamento], essa resposta se concentra não apenas em honrar a Deus, mas também no amor, na generosidade e no serviço leal aos irmãos (Gálatas 5:13-14; 6:2; Romanos 13:9-10). A doação é gratuita e sem coação, mas o ouvinte da época sabia que aceitar um presente significava aceitar também a obrigação do doador” (p. 525).
Juntando isso com o que vimos anteriormente, entendemos que se espera que um cristão se comprometa a se tornar uma nova pessoa, rejeitando velhos caminhos pecaminosos durante esse novo relacionamento estabelecido a partir da charis (graça). Como Paulo escreveu em Romanos 12:1: “Portanto, irmãos, rogo-lhes pelas misericórdias de Deus que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus; este é o culto racional de vocês" (NVI).
O caminho que conduz ao comportamento justo, que Deus deseja de nós, é iluminado por Sua lei, que serve como o padrão divino de conduta. Nós, como seres humanos falíveis, violamos frequentemente esse padrão de conduta, independente do quanto estamos bem intencionados (Romanos 7:18). Também enfrentamos constantemente a implacável pressão espiritual de um adversário, Satanás, o diabo, que deseja que abandonemos o caminho.
Mas a aplicação da charis (graça) nos salva quando tropeçamos e caímos. Quando nos arrependemos, somos purificados do pecado e renovados para um relacionamento correto com nosso patrono divino, Deus. Assim, reciprocamente, na divina fé (pistis) — tendo confiança e fidelidade — em relação ao nosso patrono divino, de fato, não estamos "debaixo da lei [sob sua penalidade], mas debaixo da graça " (Romanos 6:14, NVI).
A lei de Deus — resumida no código moral dos Dez Mandamentos — nunca foi abolida, ainda mantém sua autoridade e, como afirma Paulo, ela é "santa, justa e boa" (Romanos 7:12, Nova Bíblia Viva). E como afirmou o próprio Jesus Cristo: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus" (Mateus 4:4; Lucas 4:4; citado de Deuteronômio 8:3).
A lei de Deus, portanto, indica o caminho para agirmos com fé e fidelidade — pistis — em nosso relacionamento iniciado por nosso patrono que "nos amou primeiro" (1 João 4:19). Paulo nos diz que “sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de Seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela Sua vida” (Romanos 5:10).
Paulo entendeu profundamente que “pela graça [charis] sois salvos, por meio da fé [pistis]...é dom de Deus” (Efésios 2:8). Qualquer pessoa do primeiro século que ouvisse ou lesse essas palavras teria feito uma conexão imediata com um poderoso relacionamento implícito, que requer confiança e um compromisso responsivo de permanecer fiel. (Para mais informações sobre o contexto histórico dessa linguagem, consultar “As Três Graças: Uma Perspectiva do Primeiro Século Sobre a Ação da Graça”, e ''A ideia da “Graça Livre” é Bíblica?).
Portanto, vimos que a graça não é nem um pouco contrária à lei de Deus. A graça exige que a lei de Deus defina o padrão de conduta para um profundo relacionamento inerente a um vínculo estabelecido por charis. Na verdade, Deus entregou Sua lei através da graça, a qual [graça] nos perdoa por transgredi-la e nos capacita a permanecer nela. O relacionamento de charis é evidente na “sobreexcelente grandeza do Seu poder sobre nós, os que cremos" (Efésios 1:19).
Que fantástica ilustração de um profundo relacionamento movido pela graça com o Deus Todo-Poderoso, que durará por toda a eternidade! Por isso, não é de se admirar que a própria Bíblia finalize com esse encorajamento em Apocalipse 22:21 (NLT): “A graça [charis] do Senhor Jesus Cristo seja com todos os santos. Amém" (Bíblia Amplificada).