A ideia da “Graça Livre” é Bíblica?

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A ideia da “Graça Livre” é Bíblica?

O abuso do conceito da graça começou cedo, apenas algumas décadas após a morte e ressurreição de Jesus Cristo e a fundação da Igreja primitiva. Os falsos mestres difundiram a ideia de que a graça de Deus tornava desnecessária a obediência à lei de Deus. Como a graça de Deus traz o perdão, eles argumentaram, podemos continuar pecando, pois Deus nos perdoará, independente do que façamos.

Isso foi uma hedionda perversão da graça de Deus! Judas, o meio-irmão de Jesus Cristo, condenou essa mentira em sua epístola aos crentes: "[Eu] que me senti obrigado a corresponder-me convosco, exortando-vos a batalhardes, diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos”, escrevendo sobre aqueles que tinham transformado a graça de Deus em uma mensagem diferente e perigosa. “Pois certos indivíduos se introduziram com dissimulação, os quais, desde muito, foram antecipadamente pronunciados para esta condenação, homens ímpios, que transformam em libertinagem a graça de nosso Deus e negam o nosso único Soberano e Senhor, Jesus Cristo” (Judas 3-4, ARA).

Esses “homens ímpios” estavam abusando da misericórdia e do perdão, que vem através da graça de Deus, transformando isso em "libertinagem” — permissão para pecar. Eles continuavam no pecado, em vez de abandonar esse perverso estilo de vida e ensinavam a outros a fazer o mesmo, negando assim a Cristo por suas ações — dando as costas ao sacrifício de nosso Mestre e Senhor, que deu a vida pelos pecados de toda a humanidade.

Evidentemente, não era isso que Deus e os escritores do Novo Testamento pretendiam transmitir sobre a graça. Conforme explicado no capítulo anterior, o ato de aceitar a graça de Deus impõe sérias obrigações ao receptor (consulte “Como a Graça Era Entendida no Tempo e na Cultura dos Apóstolos”). Como observa o estudioso David deSilva, isso inclui “demonstração de respeito pelo benfeitor...agindo de maneira a aumentar sua honra e, certamente, evitando qualquer atitude que lhe traga desonra...[e demonstrar] muitíssima lealdade pessoal ao patrono, mesmo que essa lealdade leve o cliente a perder seu bem-estar físico, riqueza, reputação ou pátria” (An Introduction to the New Testament: Contexts, Methods and Ministry Formation [Uma Introdução ao Novo Testamento: Contextos, Métodos e Formação de Ministério, em tradução livre], 2018, pp. 103-104).

Simplificando, em reconhecimento e gratidão por receber a graça de Deus, espera-se que tenhamos uma vida piedosa, humilde e totalmente obediente, rendida e dedicada a Deus, independente dos custos.

Outros estudiosos da atualidade passaram a ver o real significado da graça, como é entendido pelos escritores bíblicos, colocando-se em flagrante contradição com a visão errônea que permeia o pensamento religioso há séculos. Um deles é o Dr. Brent Schmidt, que em seu livro de 2015, Relational Grace: The Reciprocal and Binding Covenant of Charis [A Graça Relacional: O Pacto Recíproco e Vinculativo da Charis, em tradução livre], resume o problema, a visão correta e a resposta da graça de Deus:

“Diversos intelectuais, estudiosos e sacerdotes cristãos ensinaram que a graça é algo concedido livremente por Deus, sem nenhum relacionamento particular ou dependência de ações da pessoa que a recebe. Entretanto, documentos antigos fornecem evidências de que essa noção específica do termo charis está em desacordo com o entendimento da graça antes de Cristo e durante os primeiros séculos após Cristo. O significado comum, entendido por uma ampla gama de culturas até o século V, era que a graça era a essência de um acordo bilateral, díspar, recíproco e vinculativo entre duas partes, nas quais ambas tinham obrigações. Em outras palavras, a graça não era ‘livre’ [pelo menos no sentido de não haver condições para a continuidade da graça].

“No mundo antigo, essa prática entre pessoas de alto escalão que concediam favores a seus subordinados serviu aos escritores do Novo Testamento como modelo para a doação amorosa de Deus por sua benevolência e misericórdia à humanidade através da Expiação de Jesus Cristo. Ao receber o dom de Deus, a humanidade, de forma vertical, passa a ter obrigações com Deus e aceita o dever recíproco de fazer todo o possível para demonstrar gratidão, e isso inclui a observância de Seus mandamentos.

“Deus e a humanidade estão vinculados por esse relacionamento da graça, conhecido como aliança. A charis, nos antigos textos gregos e no Novo Testamento, denotava alianças em um estado ideal de igualdade que obrigava os receptores a expressar alegria, gratidão e generosidade no espírito de justiça. Infelizmente, esse antigo entendimento da graça foi um pouco obscurecido por Agostinho e outros teólogos medievais primitivos, que foram profundamente influenciados pela filosofia neoplatônica. Esses autores reformularam o conceito de uma forma recíproca de graça para algo que foi livremente concedido por Deus e que não dependia ou esperava qualquer reciprocidade em termos de serviço a Deus.

“Durante a história do cristianismo, alguns personagens desafiaram essa tradição da graça livre, mas foram ignorados; portanto, o conceito deles sobre a graça recíproca foi desdenhado pela forte tradição cristã. A incompreensão do clássico significado da graça na era moderna gerou muita confusão. Esse entendimento medieval e moderno da graça — "graça gratuita" — até hoje é usado por vários grupos cristãos . . .

“Passagens nas antigas inscrições, papiros e literatura greco-romana demonstram as conotações de reciprocidade de charis no mundo antigo do Mediterrâneo...Não existe um uso de charis que reflita inequivocamente a visão acima mencionada da graça livre em qualquer texto grego antigo, incluindo as cartas atribuídas a Paulo. Embora os renomados estudiosos por séculos tenham expressado anacronicamente a charis como algo completamente ‘livre’ e sem obrigação em suas traduções, não há nenhuma evidência antiga para apoiar . . . as alegações de uma graça sem obrigações, livre ou incondicional. Pelo contrário . . . a charis graça denota obrigações.

“Algumas noções populares e modernas da graça se afastaram de seu antigo contexto, pois ela sempre implica reciprocidade, obrigação e diversas formas de acordos. Felizmente, vários teólogos cristãos tentaram entender o antigo significado de charis e, pelo menos, defendem questionar o atual entendimento popular da graça” (pp. 201-203, grifo nosso).

A graça abrange muitas coisas, mas, como se vê aqui, ela é fundamental para uma vida transformada pelos dons de Deus e edificada sobre um relacionamento de gratidão, rendição e compromisso com Deus. Uma leitura atenta das diversas menções da graça na Bíblia mostra que esse é o verdadeiro entendimento dos escritores bíblicos e de seu público do primeiro século.